De todas as receitas natalícias esta é a que me trás mais e melhores memórias.
A minha avó Cila e o meu avô António a amassá-las juntos na cozinha. O meu avô a segurar o alguidar e a minha avó, com massa até ao cotovelo a amassar. A bater na massa uma e outra vez.
Na cozinha o cheiro a fritos. O tacho já velho e meio amarelo por fora, de anos e anos de frituras, onde uma de cada vez, as filhós eram fritas. A minha avó, de mão engordurada em azeite – que tinha numa tacinha junto ao fogão – a tender a filhó muito fininha, transparente quase a romper e colocá-la no óleo quente. E o meu avô ao seu lado com um garfo grande a virar carinhosamente cada filhó até ficar bem dourada e a deixá-la escorrer bem. Era quase como observar um bailado. Tudo muito bem orquestrado, numa ordem já com muitos anos.
Depois as filhós muito bem postas em carreiros perfeitos sobre um tabuleiro e muito bem polvilhadas – ainda quentes – com açúcar e canela. Tarefa que executei durante muitos anos, antes de aprender a tender e fritar cada uma daquelas filhós, sob o olhar atento do meu avó, o “especialista”, que ia fazendo olhares de aprovação e exclamações de “ela tem jeito!”.
A tarefa era demorada. Fora o tempo de levedar e amassar, a parte de fritar era tarefa para algumas horas – a tarde toda até, que se executava durante a tarde do dia 24. Algumas filhós eram ainda comidas quentes, uma grande travessa estava na mesa da Ceia de Natal, mas o que me intrigava sempre em criança era o facto de se guardarem as ditas num grande panelão que se tapava muito bem com a respetiva tampa. Tudo aquilo que parecia mágico. Quase tão mágico como a chegada do Pai Natal e os presentes deixados no sapatinho.
Eu gosto das filhós acabadas de fazer. E também no dia seguinte. Ou passados vários dias quando já começam a ficar secas. São o meu pequeno almoço do dia de natal, com uma chávena de leite com café. Gosto de comer primeiro as bordas mais massudas e sem açúcar e de deixar a parte fina e estaladiça e com açúcar e canela para o fim.
À medida que os anos foram passando a avó deixou de conseguir amassar as filhós. Fomos tendo alguma ajuda para essa tarefa, mas a parte de tender e amassar continuou o mesmo bailado de sempre. A avó a tender e o avô a fritar, escorrer, fazer as carreirinhas e a polvilhar com o açúcar e canela.
O ano passado a avó já não pode. A avó já muito debilitada já nem passou o natal connosco. Mas a tradição das filhós não podia acabar. Já não haveria o mesmo “bailado” entre o avô e a avó. Acho que no fundo sabia que isso nunca mais aconteceria…
Peguei no meu papelinho com a receita e recriei as minhas memórias. Amassei, deixei levedar com muito carinho e tendi cada uma daquelas filhós, uma por uma, com a mão engordurada de azeite que ia mergulhando na tacinha, como a minha avó fazia.
E perpetuei o bailado. Ao meu lado o Miguel virou cada uma daquelas filhós até ficarem douradinhas. Escorreu-as. Fez carreirinhas e polvilhou-as com açúcar e canela. E no fim havia uma travessa cheia que foi colocada na mesa para a ceia de natal.
Não há natal sem as filhós da avó. Sem o cheiro a fritos e a açúcar e canela. E sem as memórias que só a comida nos pode trazer.
Porque há receitas que aquecem a alma. Que nos alimentam o espírito e nos fazem acreditar que há muito mais na comida do que só ingredientes e preparação.
Estas filhós são também o meu natal. São a minha avó Cila à mesa connosco. São as recordações boas e felizes que teremos para sempre.
Ingredientes:
500g de farinha
3 ovos (à temperatura ambiente)
100g de abóbora cozida em puré (e muito bem escorrida)
1/2 cálice de aguardente
20g de fermento de padeiro (ou 5g de levedura seca Fermipan)
50ml de azeite
1 laranja pequena (sumo)
acúcar amarelo e canela para polvilhar
Preparação:
Numa taça grande coloque os ovos, o azeite e o fermento de padeiro desfeito num pouco de água morna(se a água estiver muito quente ou muito fria as filhós não levedam). Misture tudo muito bem e acrescente depois, cerca de metade da farinha. Amasse bem e junte agora a aguardente, o puré de abóbora e o sumo de laranja.
Aos poucos vá juntando a restante farinha, amassando bem até obter uma massa semelhante a uma massa de pão. Amasse bem durante alguns minutos – a massa tem de ser bem batido e sovada – e tape depois com um pano deixando repousar num local longe das correntes de ar. (Por vezes, se estiver muito frio ou se estiverem a preparar a massa num local muito frio, ajuda envolverem a taça onde a massa está a levedar num cobertor!)
Ao fim de cerca de 3 horas a massa deve estar bem leveda e pronta a fritar.
Numa taça coloque um pouco de azeite para ir molhando as mãos ao tender a massa, e leve um tacho ou fritadeira ao lume com óleo vegetal e deixe aquecer. (Precisa de ajuda para esta parte. Enquanto uma pessoa tende as filhós, outra terá de as ir virando.)
Molhe as mãos no azeite e retire uma bolinha de massa – que deve ter o tamanho de uma bola de ping-pong ou uma ameixa pequena.
Com as mãos engorduradas tenda a massa de modo a que esta vá ficando muito fina ao centro, quase transparente, mas sem romper, e com umas bordas mais gorduchas. Coloque depois a filhó tendida no óleo quente e deixe fritar de um lado até ficar dourada, e vire depois deixando fritar do outro lado. Retire, deixe escorrer um pouco e polvilhe com um pouco de açúcar amarelo e canela enquanto ainda estão quentes. (Segundo o meu avô as filhós perfeitas são muito finas ao centro mas sem estarem com buracos, são … Ver artigo completo no Blog